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terça-feira, 5 de outubro de 2010

Na mesa


Ilustração de Norman Rockwell

Na mesa, tinha tudo. Sorrisos, pernas, braços e bocas.
Meninos, meninas, homens, mulheres.
Tinha tudo naquela mesa, desde uma extremidade à outra.
Tinha repreensões ao neto glutão: a gorda velha o beliscava, sutil.
Tinha risinhos durante a oração de graças, fofoca também tinha nas cadeiras das noras.
Tinha ostentação na cabeça da mesa, e tinha uma inveja bigoduda na outra ponta.
Tinha flertes indecentes no meio da mesa, pés obscenos por debaixo dela.
Tinha tanto, tanto... que tinha gente que se esquecia da comida [como aquela guria macricela].

E eu ali da janela. Sem mesa, sem comida.
Eu só tinha uma fome miserável, mas não estava na mesa.

Priscilla Acioly, escrito em 05/10/2010

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O guarda-chuva


Quando inventaram o guarda-chuva, a chuva foi o que menos contou; só para você saber.

Eu sempre digo que guarda-chuvas não servem para livrar as pessoas da chuva. Têm inúmeras utilidades, sim, mas não a de guardar você de uma chuva - tempestade, ou de leve que seja. A mulher, por exemplo, que estava andando com seus tamancos de plataforma e seu sobretudo Tweed. Ela não estava com aquele guarda-chuva em punhos e passos confiantes por uma questão simples de querer fugir de um evento da natureza.

Veja bem, ao levar o objeto sobre si, ela se escondia não da chuva ou do vento. Era uma questão de auto-estima - ou a falta (e a recuperação) da mesma. Com o guarda-chuva à frente do rosto ninguém saberia que ela escondia a identidade de uma profissional fracassada, esposa traída ou, sei lá qual talvez fosse seu problema - ainda que eu tenha a certeza de que o problema existe. Portanto, tudo o que ela precisava era seguir a reta, muito bem armada. O guarda-chuva não a livrava da chuva... ah, não. Era muito mais que isso.

E quando cada louco - no mais puro sentido do vocábulo louco - se apega ao seu último recurso, - o mendigo e seu cão piolhento, o senhor com a sua bengala, a menina histérica ao celular, o jovem e seu relógio de pulso rolex - enquanto isso, os pingos de chuva não perdoavam a meia-calça daquela mulher. Qual o sentido, afinal, de tentar cobrir a cabeça? Uma das partes sempre fica de fora. E, mesmo assim, continuava a mulher e o seu guarda-chuva. Suas canelas eram a única prova de que guarda-chuvas são uma farsa.



Priscilla Acioly, escrito em 12/08/2010

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Quem passa e não vê



Este blog começa assim. Sem voz, sem estardalhaço. A primeira estória que conto, não é mentira, nem verdade.

A menina andava pela rua distraída e sonolenta.
Ela olha para um pedaço de papel sujo no chão e pisa em cima dele, seguindo caminho em frente.

O menino andava pela rua bem rápido, parecia fuga.
Carregava algo dentro do bolso - algum pertence alheio, provavelmente.
O pedaço de papel gruda em seu sapato por uns segundos, logo solta e volta ao chão.

A senhora andava pela rua bem devagar, qual uma tartaruga.
Ajeitou os óculos na cara. O papel estava bem ali embaixo do seu nariz.
A senhora deu meia-volta. Esquecera o remédio dos ossos.

O bêbado andava pela rua cambaleante.
Cantarolou qualquer coisa num tom desafinado e feio, deu bom dia a pessoas invisíveis. Continuou o caminho, ignorando o pedaço de papel.

A mulher andava pela rua aflita, olhando apenas para os céus desejando a providência divina. Tão agustiada estava que enfiou o pé na poça e, antes que pudesse prosseguir, atravessou a rua, mudou de calçada... e o papel estava lá.

Um gato sem dono andava pela rua atento e faminto. Avistou algo azul, era um peixe. E foi ali que o gato sagaz matou sua fome.
Comeu uma nota de cem.


Priscilla Acioly, escrito em 13/05/2010