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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Na rua de baixo



         Na rua de baixo, mora uma menina. Pouco mais de quinze anos, cabelos crespos e olhos carentes. Sempre que passo apressado com passos de vento, a menina me fita nos olhos e desacelera meus reflexos, ao passo que tudo fica em câmera lenta e meus passos de ventania se esvaem em compassos de pluma, de brisa. Ela me olha desde a casa amarela até eu fazer a pequena curva e ela me observa de tal modo que, mesmo de costas, sinto suas pupilas se dilatarem quando troco as últimas passadas para fazer a curva e desaparecer. Posso prever que quando saio do alcance de sua visão, ela continua ali por mais cinco ou quinze minutos olhando pro nada, ou olhando pro 'eu' que na mente dela ainda se recria passando e repassando por ali com cada movimento meticulosamente previsto até fazer a curva, ou - para ela - a maldita curva.

            Isso se dá todos os dias no mesmo horário. Passo pela menina, ela me fita e me estuda como se algo de surpreendente pudesse esperar acontecer com o novo dia. Da mesma maneira que um dia tempestuoso e trevoso precede um dia de sol e calor, da mesma forma que a lua cheia pedante renuncia e dá lugar à lua nova, ou do mesmo modo que uma criança alegre é capaz de converter riso em choro por causa de um pequeno descuido. E eu não ouso a reciprocidade. Tenho a impressão de que se eu a fitar nos olhos também, se eu a explorar com a mesma intensidade que ela me explora, eu nunca mais serei o mesmo. Tenho medo disso. Porque a tal menina nunca mais foi a mesma depois que nos beijamos debaixo duma pequena árvore. E é por isso que todos os dias, incansavelmente, eu ainda tento fazer a curva. 


Priscilla Acioly 11/08/2009 


domingo, 17 de julho de 2011

Apenas gotas


Seu suor escorre
Como o orvalho à noite
Suor que engole
E pingo a pingo contorna o seu corpo
Ainda que de forma desagradável, seu rosto.
Mas não me importo
Porque de manhã seca-se o orvalho.
E à tarde seu corpo espelha-se nas gostas da piscina.
De forma visível, porém insípida!
Ah, se eu fosse gotas!

Priscilla Acioly, 27/06/2007

sábado, 2 de julho de 2011

Perdida



Quando saí de casa, decidi três coises firmemente: Não voltaria pra casa, não deixaria que pagassem minha comida e nunca passaria um dia com mais de 10 reais no bolso. No começo, devo admitir, foi mais fácil que pensei. Torrei todo o dinheiro que tinha até chegar a dez paus. Doei para instituições de caridade, mas sem motivos de caridade - até porque foi pouca quantia, só era o primeiro lugar e a primeira chance de me livrar do dinheiro. Pagava gordos valores a esses cantores vagabundos das ruas... comprei quadros artesanais também de hippies que ganhavam a vida vendendo pra gente que pouco se lixava pro trabalho árduo de pintar interior de garrafas com areia. Bom, eu admirava a tarefa difícil mas devo ter pouco me lixado pros seus quadros também porque os atirei em um rio - achei que ficava mais realista um quadro com um barco ancorado fluindo nas águas de um rio sujo; livre de novo. Fui ao circo algumas vezes, numa delas vomitei num cara da frente. Tentou me levar pra casa dele, chutei seu saco, vomitei em seu tapete também. Apesar do meu rosto acabado e cabelo desgrenhado, me impressionava os velhos nojentos da cidade ainda tentarem ganhar uma transa. Não preciso mencionar os cigarros, maior quantia na qual gastei meu dinheiro, fiquei dura. Que bom, meu vício foi embora junto com o dinheiro. O último cigarro que fumei, agora ameaço lacrimejar - só não sei se de emoção ou se por causa do vento empoeirado e frio da tarde - eu sugava toda a vida anterior a essa nova rotina de rua, ela chegava aos meus pulmões e depois saía de forma tão liberal e fumacenta pela minha boca... suguei meu carro, a casa, a estante de livros da qual um dia me orgulhei. Numa das puxadas, pensei sugar meu diploma - não valia a pena. Suguei meus antigos namorados, como que por último ato de luxúria, soltei mais fumaça do que em todas as vezes que já tinha soltado com um maço, agora era um cigarro. Uma nova vida, cuspi. Depois tossi. Engasguei. Os vícios não são tão importantes quando você só tem duas notas de cinco no bolso para gastar. Porque vai ter que usar esse dinheiro para algo realmente satisfatório no período de 24 horas. Se pensam que só gasto com comida, estão enganados. Outro dia comi o pão que jogaram aos pombos... assim pude comprar estalinhos, palavras-cruzadas e um bumerangue. Os estalinhos eu dei prum garotinho preto de nove anos que encontro numa praça toda quinta. Ele nunca foi em festa junina, a palavra-cruzada dei pruma velha rabugenta que faz palavras-cruzadas na mesma praça. O bumerangue é meu. É o objeto importante do dia, vou usar hoje à noite antes de dormir. Vou jogar e, no mesmo instante, vou correr na direção oposta. Mas vou correr rápido, pra eu não mudar de idéia e considerar ficar com ele. Ele vai ficar perdido, tem que ficar perdido. Se não quiser que te achem, é melhor não achar nada. Sou uma perdida na vida.

Priscilla Acioly, 02/07/2011