Na rua de baixo, mora uma menina. Pouco mais de quinze anos, cabelos crespos e olhos carentes. Sempre que passo apressado com passos de vento, a menina me fita nos olhos e desacelera meus reflexos, ao passo que tudo fica em câmera lenta e meus passos de ventania se esvaem em compassos de pluma, de brisa. Ela me olha desde a casa amarela até eu fazer a pequena curva e ela me observa de tal modo que, mesmo de costas, sinto suas pupilas se dilatarem quando troco as últimas passadas para fazer a curva e desaparecer. Posso prever que quando saio do alcance de sua visão, ela continua ali por mais cinco ou quinze minutos olhando pro nada, ou olhando pro 'eu' que na mente dela ainda se recria passando e repassando por ali com cada movimento meticulosamente previsto até fazer a curva, ou - para ela - a maldita curva.
Isso se dá todos os dias no mesmo horário. Passo pela menina, ela me fita e me estuda como se algo de surpreendente pudesse esperar acontecer com o novo dia. Da mesma maneira que um dia tempestuoso e trevoso precede um dia de sol e calor, da mesma forma que a lua cheia pedante renuncia e dá lugar à lua nova, ou do mesmo modo que uma criança alegre é capaz de converter riso em choro por causa de um pequeno descuido. E eu não ouso a reciprocidade. Tenho a impressão de que se eu a fitar nos olhos também, se eu a explorar com a mesma intensidade que ela me explora, eu nunca mais serei o mesmo. Tenho medo disso. Porque a tal menina nunca mais foi a mesma depois que nos beijamos debaixo duma pequena árvore. E é por isso que todos os dias, incansavelmente, eu ainda tento fazer a curva.
Priscilla Acioly 11/08/2009