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sábado, 2 de julho de 2011

Perdida



Quando saí de casa, decidi três coises firmemente: Não voltaria pra casa, não deixaria que pagassem minha comida e nunca passaria um dia com mais de 10 reais no bolso. No começo, devo admitir, foi mais fácil que pensei. Torrei todo o dinheiro que tinha até chegar a dez paus. Doei para instituições de caridade, mas sem motivos de caridade - até porque foi pouca quantia, só era o primeiro lugar e a primeira chance de me livrar do dinheiro. Pagava gordos valores a esses cantores vagabundos das ruas... comprei quadros artesanais também de hippies que ganhavam a vida vendendo pra gente que pouco se lixava pro trabalho árduo de pintar interior de garrafas com areia. Bom, eu admirava a tarefa difícil mas devo ter pouco me lixado pros seus quadros também porque os atirei em um rio - achei que ficava mais realista um quadro com um barco ancorado fluindo nas águas de um rio sujo; livre de novo. Fui ao circo algumas vezes, numa delas vomitei num cara da frente. Tentou me levar pra casa dele, chutei seu saco, vomitei em seu tapete também. Apesar do meu rosto acabado e cabelo desgrenhado, me impressionava os velhos nojentos da cidade ainda tentarem ganhar uma transa. Não preciso mencionar os cigarros, maior quantia na qual gastei meu dinheiro, fiquei dura. Que bom, meu vício foi embora junto com o dinheiro. O último cigarro que fumei, agora ameaço lacrimejar - só não sei se de emoção ou se por causa do vento empoeirado e frio da tarde - eu sugava toda a vida anterior a essa nova rotina de rua, ela chegava aos meus pulmões e depois saía de forma tão liberal e fumacenta pela minha boca... suguei meu carro, a casa, a estante de livros da qual um dia me orgulhei. Numa das puxadas, pensei sugar meu diploma - não valia a pena. Suguei meus antigos namorados, como que por último ato de luxúria, soltei mais fumaça do que em todas as vezes que já tinha soltado com um maço, agora era um cigarro. Uma nova vida, cuspi. Depois tossi. Engasguei. Os vícios não são tão importantes quando você só tem duas notas de cinco no bolso para gastar. Porque vai ter que usar esse dinheiro para algo realmente satisfatório no período de 24 horas. Se pensam que só gasto com comida, estão enganados. Outro dia comi o pão que jogaram aos pombos... assim pude comprar estalinhos, palavras-cruzadas e um bumerangue. Os estalinhos eu dei prum garotinho preto de nove anos que encontro numa praça toda quinta. Ele nunca foi em festa junina, a palavra-cruzada dei pruma velha rabugenta que faz palavras-cruzadas na mesma praça. O bumerangue é meu. É o objeto importante do dia, vou usar hoje à noite antes de dormir. Vou jogar e, no mesmo instante, vou correr na direção oposta. Mas vou correr rápido, pra eu não mudar de idéia e considerar ficar com ele. Ele vai ficar perdido, tem que ficar perdido. Se não quiser que te achem, é melhor não achar nada. Sou uma perdida na vida.

Priscilla Acioly, 02/07/2011

Um comentário:

  1. todo feminino divide-se em psiquê e afrodite, segundo o arquétipo. de afrodite vem os rompantes, rebeldias e contradições.

    a protagonista parece perdida de si, mais que de outros. sua auto agressão, parece não resvalar em mais nada além da sua atitude propriamente dita. falta de propósito é característica contemporânea (?). geração perdida? não sei, mas até a conclusão esperava "a" porrada que não veio.

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